As ferramentas para solução de conflitos empresariais no cenário de crise econômica – Parte II (Recuperação Judicial)

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Ursula Ribeiro de Almeida

O enfrentamento dos conflitos empresariais decorrente da crise econômica provocada pelo coronavírus exige a adoção de múltiplas ferramentas na qual estão inseridos meios judiciais e não judiciais. No primeiro texto explicamos a necessidade de se fazer uma análise de risco para identificar os potenciais conflitos e buscar métodos alternativos de solução de conflitos (negociação, mediação e conciliação) (Leia mais).

Ocorre que os métodos alternativos de solução de conflito podem não ser suficientes para a multiplicidade de disputas enfrentadas pelo setor empresarial. Uma empresa que tem vários credores, por exemplo, pode conseguir fazer acordo com alguns e não com outros e, neste caso, talvez não seja suficiente para enfrentar a crise econômica momentânea.

Diante deste cenário, a recuperação judicial pode ser uma alternativa para conciliar os interesses de todos os credores e do devedor conjuntamente. A Roncato Advogados esclarece os principais aspectos da recuperação judicial para que se avalie a conveniência do seu ajuizamento.

 

O que é recuperação judicial? A recuperação judicial é um processo judicial no qual o empresário ou a sociedade empresária propõe ação judicial para flexibilizar o cumprimento de obrigações contratuais, pois não conseguem satisfazer todos os seus credores integralmente em razão de crise econômico-financeira.

O risco de congestionamento do Judiciário. Até o momento não se conhece a extensão e duração da crise econômica decorrente do coronavírus, mas já se sabe que atingirá quase todos os setores da atividade empresarial. Assim, vislumbra-se um aumento significativo de pedidos de recuperação judicial. Como se trata de processo altamente técnico e complexo, é possível que o Judiciário não tenha a estrutura necessária para atender toda a demanda no tempo necessário para viabilização da efetiva recuperação das empresas. Portanto, recomenda-se a escolha pela recuperação judicial se os outros meios de solução de conflitos não forem suficientes para renegociar as obrigações com os credores.

 

A finalidade da recuperação judicial. De acordo com o artigo 47 da Lei n° 11.101/2005, “a recuperação judicial tem por objetivo viabilizar a superação da situação de crise econômico-financeira do devedor, a fim de permitir a manutenção da fonte produtora, do emprego dos trabalhadores e dos interesses dos credores, promovendo, assim, a preservação da empresa, sua função social e o estímulo à atividade econômica.”

Ou seja, a finalidade da recuperação judicial é reunir todos os credores para se adotar um plano para que a empresa devedora renegocie as suas obrigações e, ao mesmo tempo, prossiga exercendo a sua atividade, sob a supervisão dos credores,  para que cumpra as obrigações renegociadas. Daniel Carnio Costa sintetiza os múltiplos interesses que devem ser atendidos simultaneamente na recuperação:

“A recuperação judicial deve ser boa para o devedor, que continuará produzindo para pagamento de seus credores, ainda que em termos renegociados e compatíveis com sua situação econômica. Mas também deverá ser boa para os credores, que receberão os seus créditos, ainda que em novos termos e com a possibilidade de eliminação desse prejuízo no médio ou longo prazo, considerando que a recuperanda continuará a negociar com seus fornecedores. Entretanto, não se pode perder de vista que tudo isso se faz em função do atingimento do benefício social e, portanto, só faz sentido se for bom para o interesse social.”[1]

 

Créditos submetidos à recuperação judicial. Em princípio, todos os credores participam da recuperação judicial, assim precisam renegociar as condições de pagamento do seu crédito e participam dos processos deliberativos a respeito da condução das atividades da empresa devedora. É importante destacar que estão excluídos da recuperação judicial – ou seja, podem prosseguir com as suas ações e execuções:

a) Os créditos fiscais federal, estadual e municipal;

b) Os créditos com garantia real, ficando o bem dado em garantia vinculado ao respectivo credor.

Trava bancária. As instituições financeiras criaram mecanismo denominado “trava bancária” para não se submeterem à recuperação judicial e, consequentemente, não precisarem renegociar o seu crédito e poderem prosseguir com a execução judicial. Luis Felipe Salomão explica que “mediante o contrato de cessão fiduciária de direitos de crédito, um dos contratantes cede seus direitos de crédito perante terceiros ao cessionário, que passa a ter a titularidade fiduciária desses direitos, bem como a posse direta e indireta do documento respectivo, com o objetivo de garantia ao cumprimento de uma obrigação.”[2] Desta forma, se parte substancial dos débitos da empresa recuperanda tiver garantia fiduciária, a recuperação judicial pode ser inócua.

 

Efeitos do processamento da recuperação judicial. O processamento da recuperação judicial tem como principais efeitos a suspensão do prazo prescricional e das ações e execuções ajuizadas em face do devedor.

Stay period. A suspensão da prescrição e das demandas judiciais é limitada ao prazo improrrogável de 180 dias, contado da data do deferimento do processamento da recuperação. Após este prazo, os credores podem prosseguir com as suas ações judiciais, independentemente de decisão do juízo da recuperação judicial. Embora seja necessário se estabelecer um prazo para se evitar a eternização da recuperação judicial, critica-se a sua extensão porque geralmente o plano de recuperação demora mais de 180 dias para ser aprovado. Assim, cria-se situação que pode inviabilizar a recuperação com o prosseguimento de execuções judiciais e posterior aprovação de plano, que poderá se mostrar inviável se houver constrição dos bens do devedor nas execuções.

Os credores excluídos do stay period. Os credores que não estão inseridos na recuperação judicial podem prosseguir com as suas ações e execuções. Assim, as execuções fiscais e dos credores com garantia real prosseguem. Entretanto, a legislação ressalva que é possível restringir a execução de bens necessários ao funcionamento da empresa por esses credores (art. 49, § 3°, da Lei n° 11.101/2005).

 

Plano de recuperação. O devedor tem o prazo improrrogável de 60 dias, contado a partir da decisão que deferiu o processamento da recuperação judicial, para apresentar o plano de recuperação judicial, que deve descrever detalhadamente os meios de recuperação e demonstrar a sua viabilidade econômica, devendo ser acompanhado por laudo econômico-financeiro e de avaliação dos bens e ativos assinado por profissional legalmente habilitado ou empresa especializada (art. 53, caput, da Lei n° 11.101/2005).

A relevância do Risk Asssessment. No primeiro artigo que publicamos, destacamos a importância de se fazer prévio levantamento das obrigações vigentes e o risco de seu descumprimento, assim como as alternativas para flexibilização das obrigações contratuais. Este trabalho preliminar é essencial para preparar plano de recuperação que seja economicamente viável.

Deliberação dos credores. Os credores têm o prazo de 30 dias para apresentar eventual objeção ao plano. Caso haja objeção, o juiz convocará assembleia-geral de credores para deliberar sobre o plano de recuperação. Se o plano for rejeitado, o juiz decretará a falência do devedor. É possível ainda que os credores apresentem propostas de alteração, que deverá ter a anuência expressa do devedor. Aprovado o plano pelos credores, o juiz concede a recuperação judicial, cuja decisão implica em novação dos créditos anteriores e constitui título executivo judicial.

Prazo para recuperação. Após a aprovação do plano, o devedor poderá permanecer em recuperação judicial até o prazo de 2 (dois) anos, devendo cumprir todas as obrigações previstas no plano. Em caso de descumprimento do plano, poderá ser decretada a falência do devedor.

 

Plano de recuperação aprovado antes da pandemia de coronavírus. É fato conhecido que muitas empresas enfrentavam dificuldades econômicas antes da crise econômica provocada pelo coronavírus. Diversos planos de recuperação judicial foram aprovados antes do início da crise e sua aplicação pela empresa devedora estava em andamento. Todavia, a pandemia de coronavírus impossibilita o cumprimento de diversos planos por se tratar de situação imprevisível. O que fazer neste caso? Evidentemente, o devedor precisará rever a viabilidade do plano e apresentar proposta de adequação, se necessário. A legislação vigente permite que seja convocada em caráter excepcional a assembleia-geral de credores para deliberar a respeito da modificação do plano, que poderá entender que a recuperação não é mais viável ou aprovar o novo plano apresentado pelo devedor.

 

As recomendações do CNJ durante a crise de coronavírus. O Conselho Nacional de Justiça – CNJ apresenta algumas recomendações considerando o contexto da declaração de estado de calamidade pública (Decreto Legislativo n° 6/2020) e das medidas de prevenção do contágio do coronavírus adotadas pelos estados, assim como do impacto da crise nas empresas em recuperação judicial:

a)   Prioridade no pagamento dos credores. Diante da gravidade da crise econômica,
recomendou-se aos magistrados a prioridade no levantamento de valores em favor dos
credores ou empresas recuperandas para garantia o funcionamento da economia e a
sobrevivência das famílias;
b)   Suspensão de Assembleia Geral de Credores presencial. A finalidade é atender as
determinações das autoridades sanitárias no combate à pandemia de COVID-19;
c)   Assembleia Geral de Credores virtual. Caso seja necessária a realização da
assembleia para a manutenção das atividades da devedora, o juiz pode autorizar que
seja realizada virtualmente, cabendo ao administrador judicial providenciar a sua
realização;
d)   Prorrogação do stay period. Caso seja necessário prorrogar o prazo para realização
da Assembleia Geral de Credores e/ou a homologação da sua decisão, recomenda-se
a prorrogação da suspensão das ações e execuções ajuizadas em face do devedor.
Destaca-se que não se aplica a prorrogação da suspensão do prazo prescricional, pois
dependeria de mudança da legislação;
e)   Apresentação de plano modificativo. Conforme mencionamos acima, a orientação
do CNJ é para que os juízes autorizem a devedora a apresentar alteração do plano
aprovado pelos credores se comprovar que a crise de COVID-19 afetou as suas
atividades. Como a pandemia pode ser classificada como força maior ou caso fortuito,
recomenda-se cautela antes de se decretar a falência por descumprimento das
obrigações previstas no plano;
f)   Fiscalização. Prosseguimento da fiscalização e apresentação de Relatórios Mensais
de Atividades pelos administradores judiciais.

 Destacamos que a orientação do CNJ não é vinculante (não obrigatória) porque não se trata de órgão julgador ou tribunal. As suas recomendações servem apenas como um guia para os juízes diante de crise sanitária e econômica sem precedentes.

 

Projeto de Lei n° 1397/2020. O Projeto de Lei n° 1397 foi apresentado pelo Deputado Hugo Leal com a finalidade de criar regras de caráter transitório para as empresas que enfrentam dificuldade financeira decorrente da pandemia de coronavírus. Se aprovado o projeto de lei, as regras valeriam apenas durante o período de calamidade pública declarada pelo Decreto Legislativo n° 6/2020. O referido projeto alteraria diversos dispositivos da Lei que regulamenta a recuperação judicial e a falência (Lei n° 11.101/2005), dentre os quais destacamos:

a)   Negociação preventiva: aqueles que exercem atividade empresarial podem iniciar uma
única vez procedimento de jurisdição voluntária denominada “negociação preventiva”.
Para aderir ao procedimento, o requerente deverá comprovar que sofreu queda de
faturamento igual ou superior a 30% em comparação com a média do último semestre
do exercício anterior. Iniciado o procedimento, o juiz designa um negociador para
conduzir a negociação pelo prazo máximo de 60 dias, sendo a participação dos
credores voluntária. O mais adequado seria adaptar os institutos já existentes de
mediação e conciliação para participação de múltiplos interessados;
b)   Suspensão da exigibilidade dos planos de recuperação judicial ou extrajudicial já
homologados, independentemente de decisão da assembleia geral de credores, não
podendo ser decretada a falência;
c)   Autorização para apresentação de novo plano de recuperação pela empresa que teve
o plano de recuperação aprovado antes do período da crise, podendo ser incluídos
novos créditos;
d)   Modificação do quórum de deliberação na Assembleia Geral de credores;
e)   Simplificação e ampliação do plano de recuperação judicial de microempresa e
empresa de pequeno porte.

A Roncato Advogados acompanha a tramitação do Projeto de Lei para informar oportunamente ao público a sua eventual aprovação.

 

 

[1] COSTA, Daniel Carnio. Reflexões sobre processos de insolvência: revisitando as teorias da divisão equilibrada de ônus e da superação do dualismo pendular. IN: FORGIONI, Paula A., et al (Coord.). Direito Empresarial, Direito do Espaço Virtual e Outros Desafios do Direito: Homenagem ao Professor Newton de Lucca. São Paulo: Quartier Latin, 2018, p. 817

[2] SALOMÃO, Luis Felipe. Créditos submetidos ou excluídos dos efeitos da recuperação judicial e da falência. IN: SALOMÃO, Luis Felipe; SANTOS, Paulo Penalva. Recuperação Judicial, Extrajudicial e Falência: Teoria e Prática, 4ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2019, p. 251.

 

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